Dario de Melo, o contador de histórias
Não gostava que lhe chamassem “escritor infantil”, mas sim escritor de histórias infantis. Dario de Melo, figura grande da literatura angolana, era um contador de histórias nato, de voz grave e com aquele humor irónico com cara séria que o caracterizava. O escritor que deixou tantas palavras por publicar faleceu na sua Benguela a 5 de Junho passado.
Por: Pedro Cardoso
“Queres uma boleia?”, perguntou aquela figura alta, olhos profundos. Na redação da Austral, em 2006, a oferta de Dario de Melo, escritor que escrevia regularmente na revista onde também trabalhava, caiu do céu. Acabava de regressar a Luanda, estava desorientado.
Na rua, o velho carro de Dario contava histórias, também ele. Já saindo do Alvalade em direcção ao Maculusso, atirou-me: “E tu quem és?” “Sou um português filho de angolanos”, respondi. “Boa resposta”, sentenciou. “Tem muita gente que de repente sempre foi angolano”.
Enquanto o carro furava o trânsito, falámos dele. Contou-me que nascera em Benguela (a 2 de Dezembro de 1935), a terra dos meus pais. Partilhámos nomes antigos, alguns conhecidos em comum. Já na altura, queria voltar a viver na sua cidade, desejo que se concretizaria. Em Benguela deu o último suspiro, a 5 de Junho passado.
O carro avançava e falávamos de Luanda e as suas makas. A conversa era banal, mas cada vez mais impressionava-me a forma certeira e muito honesta como esgrimia as palavras. Foi então que soube que Dario de Melo conhecia o valor incalculável de cada palavra e não as desperdiçava. Chegámos à rua da Liga Africana. “Vai com cuidado”, despediu-se, com um olhar aparentemente duro, mas de quem cuida.
Os contos na gaveta
Foi tempo depois, muito, em Abril de 2009, que finalmente retomámos a conversa onde a deixámos nessa boleia de conversas fortuitas. O contexto era diferente, formal. Uma entrevista para a “Austral”. Era uma tarde a meia-luz com o tom cerimonial da voz grave e paciente de Dario a contar um percurso fenomenal. A vida de um escritor em reflexão sobre si mesmo e um olhar crítico sobre a literatura no país.
“Não sou escritor infantil, mas sim escritor de histórias infantis”, pontualizou logo de início. Estava decepcionado com o estado da literatura para crianças no país. “Tirando o trabalho da Cremilda de Lima e da Celestina Fernandes, que de vez em quando se enchem de coragem e publicam um livro, a literatura infantil em Angola está morta”.
Tal como na boleia por Luanda, recuou aos tempos de infância em Benguela, bem perto da famosa rua 11, no mais famoso ainda Bairro Benfica. Ali viveu até aos 12 anos, contou, altura em que viajou para Portugal. “Na metrópole”, teve o primeiro choque de “português nascido na colónia”. “As pessoas eram muito diferentes da gente em Angola e viam-nos como os africanos, tipos ricos, mesmo que não tivéssemos um tostão”. Viveu em Portugal até terminar o magistério primário, quando regressou a Angola.
Como professor e inspector escolar, passou por Porto Alexandre (actual Tômbwa), Pereira d’Eça (Ondjiva), Cabinda e Bela Vista (Catchiungo, província do Huambo). Foi nesta pequena vila, em 1964, que se deu conta que “alguma coisa não ia bem em Angola”. “A dada altura, prenderam um colega meu, negro, um belíssimo professor chamado Teodoro Chitunda, que aderiu mais tarde à UNITA e morreu na Jamba. Quando soube da prisão, fui armado em branco à cadeia a pensar que aquilo era tudo meu e acabei por ser preso também”. Ficou em pânico, “estava a poucos dias do casamento”, riu-se na entrevista. Foi “durante o interrogatório”, que Dario soube que “havia um Agostinho Neto e que alguma coisa se passava em Angola, que não era tudo tão linear como eu pensava.”
Foi um ponto de viragem. A partir de então, começou a ouvir as emissões clandestinas e a despertar para o que se passava à sua volta. À Austral relembrou um episódio: “Quando já era inspector escolar, um dia encontrei nuns cadernos de alunos redacções que diziam ‘os nossos irmãos andam na mata para tornar Angola independente’. Chamei a professora, mandámos os miúdos embora e rasgámos aqueles papéis. Levei-os comigo e queimei-os. Assim, aos bocadinhos, fomos levando a coisa para a frente.”
Pouco tempo antes de Novembro de 1975 foi para Luanda onde, dizia, “vivia acantonado” desde então. Ali começou a carreira de “jornalista de fim-de-semana”. Antes de Novembro de 1975, trabalhou na revista Notícias. Depois da independência, passou pela Tveja e pelo Jornal de Angola. Com Manuel Dionísio fundou o “Correio da Semana”. Um ano depois, em 1992, criou a publicação “O Jango”.
A entrada no mundo da literatura infantil, contou, foi impulsionado já depois da Dipanda por Gabriela Antunes, quando trabalhava no Instituto Nacional do Livro e do Disco. Com Octaviano Correia e Rosalina Pombal, escrevia para o espaço que o Jornal de Angola reservava às crianças. “Foi assim que nasceu a literatura infantil no país”, decretou.
Durante a sua carreira, Dario de Melo escreveu vários livros, entre os quais “Estórias do Leão Velho” (1985), “Vou Contar” (1988), “Aqui, mas do Outro Lado” (2000) e “As Sete Vidas de um Gato” (2002), com o qual obteve o prémio PALOP-1998 de Língua Portuguesa de Literatura Infantil. Lançou também o livro de poesia “Onda Dormida”.
No entanto, muita obra ficou por publicar. Já na altura da entrevista à Austral, confessava que tinha na gaveta 94 contos para crianças. “É inútil publicá-los”, dizia. Directo como sempre, criticava os critérios de publicação de literatura infantil no país: “De vez em quando, aparecem uns tipos bem-intencionados e outros que têm dinheiro e querem ser escritores, e que pensam que é mais fácil escrever uma redacção que começa sempre por ‘era uma vez’ e que termina ao fim de duas folhas”.
Como escrever uma boa história para os mais pequenos? A resposta de Dario de Melo: “Há a ideia que escrever para crianças, ou é muito fácil, ou é a coisa mais difícil. Pois bem, não é nem mais fácil nem mais difícil do que escrever um poema, um conto ou um romance. Um bom livro infantil é um livro de escrita simples, que atrai a criança pela trama e que lhe permite visualizar facilmente o que lá está escrito. A criança interessa-se por tudo, não há assuntos proibidos, e muito menos a necessidade de nos dirigirmos a ela como se fosse uma coitadinha. Quando um miúdo não percebe, pergunta, não há coisas mais ou menos difíceis.”
Fica a lição de um dos maiores da nossa literatura.