Elinga Teatro, a resistência e o sonho
O Elinga Teatro continua imparável no tempo. O grupo acaba de fazer 34 anos, a 21 de Maio passado, com produção artística contínua e combatente. A história da companhia liderada por José Mena Abrantes conta mais que actos de palco. Abraça também a polémica e teimosa luta pela preservação do que resta da antiga baixa de Luanda e pela sua dinamização cultural. Um Quixote caluanda com a palavra em riste, contra a alienação e moinhos de betão.
Poucos lugares em Luanda nasceram tão livres. Na baixa da capital, esquina da Amílcar Cabral com o Largo Matadi (antigo Tristão da Cunha), quase com os pés na baía, o edifício do Elinga é refúgio de artistas e formas de vida. Irreverente e despreocupado, rebelde e contestatário, este espaço deixa ser.
A escadaria que dá acesso às salas de teatro e de outras produções artísticas, também ao bar, resume este percurso. Degrau a degrau, vamos subindo: “Theatre”, “Culture”, “Art”, que o teatro, cultura e arte alimentam o espaço; “No Racism”, “No Sexism”, “No Homophobia”, “No Violence”, exclusões obrigatórias; Paz, “Peace” e Amor, “Love” a dar o tom. Escada-manifesto.
O teatro é a grande alma deste espaço. Sedeada neste edifício, a companhia Elinga Teatro pisa há 34 anos os palcos de Luanda e do mundo, com histórias universais escritas em Angola ou adaptadas dos clássicos mundiais. Na página oficial, a companhia assume-se como “linha de continuidade” dos grupos teatrais do final dos anos 70, Tchinganje e Xilenga-Tetro. Também do Grupo de Teatro da Faculdade de Medicina de Luanda (1984/87). “De comum entre todos”, lê-se, “a presença do mesmo director artístico, a activa participação de um núcleo de actores que. sempre que necessário, se desdobraram em técnicos, administradores e produtores. E, “acima de tudo, um mesmo projecto de teatro, voltado para o resgate e promoção da cultura angolana a todos os níveis, incluindo um tratamento moderno dos seus valores tradicionais, e para a difusão de um repertório teatral universal.”
Nas contas do grupo, que integra nomes sonantes do teatro nacional como José Mena Abrantes, Anacleta Pereira ou Raúl do Rosário, mais de 40 peças de teatro foram produzidas ao longo das quase três décadas e meia de vida, com actuações internacionais em Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Portugal, Espanha, Itália e Brasil. Os números talvez não sejam os mais actuais, mas espelham a dimensão deste colectivo fundamental das artes angolanas.
Importante e vital, o teatro não é, porém, o único espírito que habita este edifício. Nas últimas décadas, esta tem sido a casa de muitos artistas que procuram um lugar para criar, como o pintor, escultor e cineasta António Ole ou o estilista Mwamby Wassaki. Na verdade, conta a história que este lugar construído nos anos 40 do século XX e onde funcionou o “Colégio das Beiras”, sempre teve uma predisposição natural para as artes e para o pensamento divergente. Hoji-ya-Henda, o cónego Manuel das Neves, o nacionalista Mário Pinto de Andrade e Nito Alves são alguns dos personagens da vida real que por ali passaram e que fizeram destas pedras um “testemunho histórico do passado colonial”, como constatou a classificação do edifício como monumento histórico, em 1981.
Este “estado de graça” que fazia do “Elinga” (assim se conhece o edifício) um lugar intocável para os bulldozers apagou-se em 2012, quando o Ministério da Cultura o desclassificou. A baixa de Luanda começara há uns anos uma transformação radical com a demolição dos casarões da época colonial e a construção encavalitada de arranha-céus. Também havia planos para este edifício: transformá-lo num parque de estacionamento, escritórios e num hotel.
Um movimento cívico reuniu de imediato arquitectos, artistas e amigos do Elinga. O barulho foi tanto que chegou às páginas de jornais internacionais, como o francês Le Monde. Na verdade, não se tratava só do Elinga. A questão era mais profunda e continua a ser actual – até que ponto a “modernização” da baixa de Luanda é sustentável, sob o ponto de vista de preservação do património? Os solares e casas comerciais do tempo da outra senhora são coloniais, é certo, representam um processo violento, claro que sim, mas são parte da História. Como mantê-los vivos nos pode ajudar a projectar o futuro?
Entre discussões sobre o que fazer ou não, e com os supostos planos modernos guardados (por agora) na gaveta, o braço-de-ferro do “demole-não-demole” está em ponto morto. O velhinho edifício do largo vai resistindo, uma vez mais. Com Molière e as suas três pancadas a agitar o ambiente boémio, artístico e livre, o Elinga reafirma a sua força no palco, ano após ano (já lá vão 34!), pondo-nos frente-a-frente com um espelho onde nos podemos reconhecer e atrever a sonhar sempre que o pano sobe e cai.